- PRIMEIRO LUGAR
SINA ESTRADEIRA
Valéria de Cássia Pisauro Lima
Entre grandes campos, cerrados
Vestem verdejantes serras
Deslizam prosa e segredo
Encanto de céu, água e terra.
Descem em mim poentes
Pássaro tenor dobra o pio
Deve ter uma morena cantando
Na margem de um beira-rio.
Na linha avermelhada do horizonte
Brilha o desejo de existir urgente
Caminho apertado, destino arado,
Afina o sentir em tudo o que se sente.
Mas, meu corpo correnteza
Carrega a poesia da estrada
O mesmo rio não volta atrás
Não secam folhas molhadas.
Saudade acompanha a sina
Quem parte busca o sonhar
Quanto mais se distancia
Aumenta o desejo de voltar.
Crio à risca meus atalhos,
Sigo firme sem me despedir,
Se um dia quiser que eu volte,
Permita-me, então, partir.
- SEGUNDO LUGAR
QUEBRANTO
MAURÍCIO LIMEIRA DOS SANTOS
Eu não posso ler poesia
porque preciso lavar a roupa.
Não é que meus olhos estejam gastos,
não eles, é o peito
que ficou embrutecido
e não se deixa comover.
O coração desaprende.
Eu não sei me abstrair para o lirismo
porque o menino está chorando.
Existe terra e pedra na cozinha,
lama e noite na janela aberta,
e não existe mais janela nem cozinha,
só a vala por onde a casa escorreu.
Eu peço um agasalho,
visto um agasalho mas não sei como será
se eu de repente adoecer.
Eu não consigo me deixar levar
por palavra doce e rima,
porque acima do sonho que me embalava
agora falta um teto,
e tem esse quebranto que não cessa,
e chove, e estamos sujos.
Eu não consigo me ver na folha
desse livro, eu peço licença.
Eu sinto vergonha
quando olhos como esses me vasculham
e se apiedam.
Eu sei que estou cheirando mal.
Eu peço desculpa.
Vou ver o menino.
O menino dormiu.
- TERCEIRO LUGAR
Lar
Léo Ottesen
Se eu pudesse escolher um lugar pra morar…
Deitado na cama com o pai, vendo tevê
em silêncio
e dizendo tudo.
Na cama do lado da cama da mãe, vendo tevê,
discutindo os filmes
e discordando e concordando um com o outro
em paz.
Na mesa da cozinha ensinando meu filho matemática,
mesmo sem saber.
Ou nas aulas de inglês que ele desistiu de ter.
Nos churrascos da irmã, em que eu só bebo e nunca como.
No jogo de cartas com a sobrinha, que só vence,
e eu nunca entendo como.
Se eu pudesse escolher um lugar pra morar,
onde eu pudesse ter lar e aguentar o que vem…
Não seria onde.
Seria quem.
- QUARTO LUGAR
Guerra do Paraguay
Carlos Brunno Silva Barbosa
Eis o soldado semeando a paz,
queimando homens, terras, animais,
e ele crê na bondade dos seus atos,
é um homem bom, cidadão pacato.
“Matei por nós!”, diz pra pátria distante.
“Matei por nós…”, repete hesitante,
pois o vento vestido de mortalha
nada espalha além do odor da batalha.
A morte perfuma a farda ferida
do assassino herói cheio de vida.
Perto dele, rasteja uma ave insana:
de asa quebrada, um pájaro campana,
contra o bruto brasileiro, ele canta,
mas seu canto feroz mais nada espanta.
Dá-lhe o inimigo um olhar de soslaio
– pena ou pesar pelo anão paraguaio?
Rufa o tambor o bárbaro exultante,
traz, fora de si, o brado retumbante,
mas, por dentro, o gigante sente fome,
a mesma míngua que a tantos consome.
Cresce o Império, mas sedimenta o pobre:
a glória faminta não lhe faz nobre.
Na penúria, entre presos e presas,
vem realidade, cai realeza.
Já nas palmeiras longínquas de cá,
gorjeia, abandonado, o sabiá:
“Ah, Brasil voraz, pai de tantos ais,
quanta avidez por guerra, quantos mais?
Tanta dor, trevas, tantos Paraguais!”
Mesmo surdo e longe, o caboclo escuta.
Agora o soldado volta da luta
para outra luta, desta vez sem paz…
- QUINTO LUGAR
Movimento
Zilca Tosta Coutinho
mente estilhaçada
suspensa
em memórias
ultrapassadas
o que veio
depois
que a dor
foi embora?
coisas, pessoas, lugares
desordem de pensamentos
desconexos e involuntários
como músculos
que funcionam
quase imperceptíveis
dentro de corpos
inaudíveis
um movimento
incômodo
e brusco
nas vísceras
e no peito
me faz pensar
no tempo desfeito
não existe escapatória
o movimento retorna
e avisa
que viver
é despedir-se
em pequenas doses
do agora.
- SEXTO LUGAR
Insuficiência cardíaca
Thiago Costa Franco de Oliveira
Era um sujeito palpitante,
Coronário e cordial.
Num certo dia de pressão (destes de rotina sistólica e diastólica)
Tornou-se miocárdico e circular. Perdeu o ritmo.
A tensão foi aumentando, hipertensionando,
Sua vida átria se perdendo num sopro, num eco,
Num eco
Do que um dia havia sido.
O semblante arterial já denunciava sua vida cava.
A cada passo marcado, um dilema trifurcado, tricúspide.
Procurou, sem sucesso, a válvula de escape.
Não conseguia mais lidar com a parada. Fartou.
Até que em uma tarde, numa das vias arteriais do coração da cidade,
Encontrou seu pulso novamente, transplantado na imagem de outro alguém.
Daquele dia em diante,
o sujeito venoso, introspectivo e capilar
Descobriu que seu coração (científico, anatômico e solitário)
Era insuficiente
E só palpitava em par.
- SÉTIMO LUGAR
AS ENGRENAGENS DO TEMPO
Dilson Solidade Lima
A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo.
William Blake
Imerso nesse quarto, enquanto assisto
o excêntrico espetáculo das horas,
a eterna brevidade vem do agora
sangrar dentro do peito como um Cristo.
Dormindo a humanidade o sono injusto
das materialísticas escolhas
e cada um por si, em sua bolha,
reinando no seu trono mais venusto…
Um susto, um surto, um súbito cometa,
(breve, não mais que breve) leve giro
dos tiques nos ponteiros, um suspiro
e o penúltimo grão dessa ampulheta
caindo… Não se sabe ao certo o rumo:
para onde o curso dessa vida avança?…
“Descansa, (um vento passa e diz) descansa!
Essa existência é nada mais que fumo”.
Fumo e o mundo, esquálida miragem,
uma saudade, um estertor imensos,
um cirandar de átomos suspenso
no nada, no clarão da paisagem.
Um trago astral no ar abraça a lua,
de rubros um Rembrandt as sombras cobre…
Chove! Cai uma tênue chuva sobre
os paralelepípedos da rua…
Eu, em sondas siderais, paralelismos,
silente e só, as pálpebras pesadas,
olhava a imensidão e via o Nada
olhando para mim com seus abismos.
Cismo… O relógio marcha, a noite foge:
pavão de cinzas-estelares, plumas…
De longe vêm de novo abrindo a bruma
os dedos da manhã de um outro hoje.
Como uma serpe de fumaça morde
a carne tão macia dos espaços
a súbita expressão do tempo abraço
e escuto no silêncio os seus acordes:
Silêncio! — Essa vida: um só segundo…
Silêncio! — Um cometa cai no mar?…
Silêncio! — Escuta o tempo a sussurrar…
Silêncio! — Cai a máscara do mundo…
- OITAVO LUGAR
indelével
Daniel Gomes Rodrigues
tenho na palavra minha panaceia.
nela também minha desgraça.
dilaceram-me os verbos
que correm sob minha carne
eufóricos e revoltos
ansiosos por uma liberdade
que jamais poderei oferecer
pois em mim tudo se encerra.
tenho no dia latente o essencial.
nele também minha desgraça.
os espantos me consomem
construindo meus castelos
ou demolindo, comigo, minhas pontes.
mastigam-me, ávidos ou deleitáveis
sem desejo qualquer além de ser
enquanto em mim tudo revivo.
tenho na clareza minha glória.
nela também minha desgraça.
implode-me a verdade, visceral
dissipando qualquer dor – mesmo que doa
e eu me diluo em mim e no tempo
em busca do fugaz momento
que possa tornar real e nítido
tudo que em mim registro.
sedento, sigo a fitar a jugular do dia
esperando que o instante mais cotidiano
me invada e me faça rasgá-la
pondo a jorrar o sangue (da verdade
do tempo da vida)
que necessito para escrever o que preciso
– e que apodrece lentamente
junto à carne de meu coração torpe
que com nada mais se assusta;
sigo, porém, completamente ciente
de que nem o sangue mais belo
trará a clareza que ambiciono
às palavras que me devoram
e com as quais tolamente tento transcrever todas as coisas.
16.05.2022
- NONO LUGAR
CORRE MENINO
RAFAEL NEVES DE SOUZA
Corre menino,
corre que o tempo é findo
tão curto é o tempo de graça
que já está se esvaindo.
As ruas de barro e asfalto
estão órfãs de pés descalços
de vozes que se estendiam
até o Sol se deitar.
Vai lá e corre menino,
corre que a vida é um sopro
pique-esconde e amarelinha
não se baixam no Play Store.
As calçadas e os quintais
estão sentindo sua falta
pule as cercas digitais
sinta a paz que a sombra é farta.
Por isso corre menino, abre os braços,
larga um pouco do teu celular,
pois os ventos vagando em teu quarto
são inimigos da pipa no ar.
Pseudônimo: DJEMERSON
- DÉCIMO LUGAR
Cais do Valongo (1811 – 2016)
OVÍDIO POLI JUNIOR
No Cais do Valongo o tráfico é intenso.
Um entra-e-sai danado: chegam os pretos novos,
recém-chegados das galés
Na vala comum do ancoradouro
em meio à maresia
ossos | cacos de cerâmica | vidro
Angola Congo Moçambique
queimados
e depois a pá de cal
Tanto negro soterrado pelo tempo
esmagado nas engrenagens
da máquina mercante
Batem os tambores e soa o batuque sobre o couro quente:
no Valongo ressoam trôpegos os sonhos
dos ancestrais escravizados
uns do lote banto | outros do lote iorubá
Sobre o antigo chão um novo piso de mármore:
pra vir Tereza Cristina Maria de Bourbon do outro lado do mundo
casar com Pedro II
Ainda hoje aqueles ossos | aqueles restos
aquelas peças todas aos milhares
abandonadas em um galpão
para catalogar:
um colar | um cachimbo
uma cesta para colher grãos
uma velha colher de madeira
uma bengala de castão
um trapo sujo | uma tíbia de criança
um cesto de bananas para vender
[vestígios] [ornamentos] [artefatos]
soterrada a memória de todo um povo
Naquele sítio ar-que-o-ló-gi-co do Rio de Janeiro
funcionou o velho mercado negreiro
(o maior das Américas)
encoberto pelo desprezo e pelo tempo
trazido à luz graças a uma espécie de erupção vulcânica:
um ti-ti-ti na região portuária
obras a pleno vapor pras Olimpíadas
e o VLT – veículo-leve-sobre-trilhos
(entre austeros mapas concebido)