Leia os finalistas da categoria nacional da 34ª Noite da Poesia!

  • PRIMEIRO LUGAR

SINA ESTRADEIRA

Valéria de Cássia Pisauro Lima

 

Entre grandes campos, cerrados

Vestem verdejantes serras

Deslizam prosa e segredo  

Encanto de céu, água e terra.

 

Descem em mim poentes

Pássaro tenor dobra o pio

Deve ter uma morena cantando

Na margem de um beira-rio.

 

Na linha avermelhada do horizonte 

Brilha o desejo de existir urgente 

Caminho apertado, destino arado,

Afina o sentir em tudo o que se sente.

 

Mas, meu corpo correnteza 

Carrega a poesia da estrada

O mesmo rio não volta atrás

Não secam folhas molhadas.

 

Saudade acompanha a sina 

Quem parte busca o sonhar

Quanto mais se distancia

Aumenta o desejo de voltar.

 

Crio à risca meus atalhos,

Sigo firme sem me despedir,

Se um dia quiser que eu volte, 

Permita-me, então, partir.

  • SEGUNDO LUGAR 

QUEBRANTO

MAURÍCIO LIMEIRA DOS SANTOS

 

Eu não posso ler poesia

porque preciso lavar a roupa.

Não é que meus olhos estejam gastos,

não eles, é o peito

que ficou embrutecido

e não se deixa comover.

O coração desaprende.

 

Eu não sei me abstrair para o lirismo

porque o menino está chorando.

Existe terra e pedra na cozinha,

lama e noite na janela aberta,

e não existe mais janela nem cozinha,

só a vala por onde a casa escorreu.

Eu peço um agasalho,

visto um agasalho mas não sei como será

se eu de repente adoecer.

 

Eu não consigo me deixar levar

por palavra doce e rima,

porque acima do sonho que me embalava

agora falta um teto,

e tem esse quebranto que não cessa,

e chove, e estamos sujos.

 

Eu não consigo me ver na folha

desse livro, eu peço licença.

Eu sinto vergonha

quando olhos como esses me vasculham

e se apiedam.

Eu sei que estou cheirando mal.

Eu peço desculpa.

Vou ver o menino.

O menino dormiu.

  • TERCEIRO LUGAR 

Lar

 Léo Ottesen

 

Se eu pudesse escolher um lugar pra morar…

Deitado na cama com o pai, vendo tevê

em silêncio

e dizendo tudo.

 

Na cama do lado da cama da mãe, vendo tevê,

discutindo os filmes

e discordando e concordando um com o outro

em paz.

 

Na mesa da cozinha ensinando meu filho matemática,

mesmo sem saber.

Ou nas aulas de inglês que ele desistiu de ter.

 

Nos churrascos da irmã, em que eu só bebo e nunca como.

No jogo de cartas com a sobrinha, que só vence,

e eu nunca entendo como.

 

Se eu pudesse escolher um lugar pra morar,

onde eu pudesse ter lar e aguentar o que vem…

Não seria onde.

Seria quem.

  • QUARTO LUGAR 

Guerra do Paraguay

Carlos Brunno Silva Barbosa

 

Eis o soldado semeando a paz,

queimando homens, terras, animais,

e ele crê na bondade dos seus atos,

é um homem bom, cidadão pacato.

“Matei por nós!”, diz pra pátria distante.

“Matei por nós…”, repete hesitante,

pois o vento vestido de mortalha

nada espalha além do odor da batalha.

A morte perfuma a farda ferida

do assassino herói cheio de vida.

 

Perto dele, rasteja uma ave insana:

de asa quebrada, um pájaro campana,

contra o bruto brasileiro, ele canta,

mas seu canto feroz mais nada espanta.

Dá-lhe o inimigo um olhar de soslaio

– pena ou pesar pelo anão paraguaio?

 

Rufa o tambor o bárbaro exultante,

traz, fora de si, o brado retumbante,

mas, por dentro, o gigante sente fome,

a mesma míngua que a tantos consome.

Cresce o Império, mas sedimenta o pobre:

a glória faminta não lhe faz nobre.

Na penúria, entre presos e presas,

vem realidade, cai realeza.

Já nas palmeiras longínquas de cá,

gorjeia, abandonado, o sabiá:

“Ah, Brasil voraz, pai de tantos ais,

quanta avidez por guerra, quantos mais?

Tanta dor, trevas, tantos Paraguais!”

Mesmo surdo e longe, o caboclo escuta.

 

Agora o soldado volta da luta

para outra luta, desta vez sem paz…

  • QUINTO LUGAR 

 

Movimento

Zilca Tosta Coutinho

mente estilhaçada

suspensa 

em memórias

ultrapassadas

 

o que veio

depois

que a dor

foi embora?  

 

coisas, pessoas, lugares

 

desordem de pensamentos

desconexos e involuntários

como músculos 

que funcionam 

quase imperceptíveis

dentro de corpos

inaudíveis

 

um movimento

incômodo

e brusco

nas vísceras

e no peito

me faz pensar

no tempo desfeito

 

não existe escapatória 

o movimento retorna

 

e avisa 

que viver

é despedir-se

em pequenas doses

do agora. 

 

  • SEXTO LUGAR

Insuficiência cardíaca

Thiago Costa Franco de Oliveira

 

Era um sujeito palpitante,

Coronário e cordial.

Num certo dia de pressão (destes de rotina sistólica e diastólica)

Tornou-se miocárdico e circular. Perdeu o ritmo.

A tensão foi aumentando, hipertensionando,

Sua vida átria se perdendo num sopro, num eco,

Num eco

Do que um dia havia sido.

O semblante arterial já denunciava sua vida cava.

A cada passo marcado, um dilema trifurcado, tricúspide. 

Procurou, sem sucesso, a válvula de escape.

Não conseguia mais lidar com a parada. Fartou.

 

Até que em uma tarde, numa das vias arteriais do coração da cidade,

Encontrou seu pulso novamente, transplantado na imagem de outro alguém.

Daquele dia em diante, 

o sujeito venoso, introspectivo e capilar

Descobriu que seu coração (científico, anatômico e solitário)

Era insuficiente

E só palpitava em par.

 

  • SÉTIMO LUGAR 

 

AS ENGRENAGENS DO TEMPO 

Dilson Solidade Lima

A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo.

William Blake

 

Imerso nesse quarto, enquanto assisto

o excêntrico espetáculo das horas,

a eterna brevidade vem do agora

sangrar dentro do peito como um Cristo.

 

Dormindo a humanidade o sono injusto

das materialísticas escolhas

e cada um por si, em sua bolha,

reinando no seu trono mais venusto…

 

Um susto, um surto, um súbito cometa,

(breve, não mais que breve) leve giro

dos tiques nos ponteiros, um suspiro

e o penúltimo grão dessa ampulheta

 

caindo… Não se sabe ao certo o rumo:

para onde o curso dessa vida avança?…

“Descansa, (um vento passa e diz) descansa!

Essa existência é nada mais que fumo”.

 

Fumo e o mundo, esquálida miragem,

uma saudade, um estertor imensos,

um cirandar de átomos suspenso

no nada, no clarão da paisagem.

 

Um trago astral no ar abraça a lua,

de rubros um Rembrandt as sombras cobre…

Chove! Cai uma tênue chuva sobre

os paralelepípedos da rua…

Eu, em sondas siderais, paralelismos,

silente e só, as pálpebras pesadas,

olhava a imensidão e via o Nada

olhando para mim com seus abismos.

 

Cismo… O relógio marcha, a noite foge:

pavão de cinzas-estelares, plumas…

De longe vêm de novo abrindo a bruma

os dedos da manhã de um outro hoje.

 

Como uma serpe de fumaça morde

a carne tão macia dos espaços

a súbita expressão do tempo abraço

e escuto no silêncio os seus acordes:

 

Silêncio! — Essa vida: um só segundo…

Silêncio! — Um cometa cai no mar?…

Silêncio! — Escuta o tempo a sussurrar…

Silêncio! — Cai a máscara do mundo…

 

  • OITAVO LUGAR

 

indelével

Daniel Gomes Rodrigues

 

tenho na palavra minha panaceia.
nela também minha desgraça.
dilaceram-me os verbos
que correm sob minha carne
eufóricos e revoltos
ansiosos por uma liberdade
que jamais poderei oferecer
pois em mim tudo se encerra.

tenho no dia latente o essencial.
nele também minha desgraça.
os espantos me consomem
construindo meus castelos
ou demolindo, comigo, minhas pontes.
mastigam-me, ávidos ou deleitáveis
sem desejo qualquer além de ser
enquanto em mim tudo revivo.

tenho na clareza minha glória.
nela também minha desgraça.
implode-me a verdade, visceral
dissipando qualquer dor – mesmo que doa
e eu me diluo em mim e no tempo
em busca do fugaz momento
que possa tornar real e nítido
tudo que em mim registro.

sedento, sigo a fitar a jugular do dia
esperando que o instante mais cotidiano
me invada e me faça rasgá-la
pondo a jorrar o sangue (da verdade
do tempo da vida)
que necessito para escrever o que preciso
        – e que apodrece lentamente
        junto à carne de meu coração torpe
        que com nada mais se assusta;

sigo, porém, completamente ciente
de que nem o sangue mais belo
trará a clareza que ambiciono
às palavras que me devoram
e com as quais tolamente tento transcrever todas as coisas.

16.05.2022

  • NONO LUGAR

 

CORRE MENINO

RAFAEL NEVES DE SOUZA

 

Corre menino,
corre que o tempo é findo
tão curto é o tempo de graça
que já está se esvaindo.

As ruas de barro e asfalto
estão órfãs de pés descalços
de vozes que se estendiam
até o Sol se deitar.

Vai lá e corre menino,
corre que a vida é um sopro
pique-esconde e amarelinha
não se baixam no Play Store.

As calçadas e os quintais
estão sentindo sua falta
pule as cercas digitais
sinta a paz que a sombra é farta.

Por isso corre menino, abre os braços,
larga um pouco do teu celular,
pois os ventos vagando em teu quarto
são inimigos da pipa no ar.

Pseudônimo: DJEMERSON

  • DÉCIMO LUGAR

Cais do Valongo (1811 – 2016)

OVÍDIO POLI JUNIOR

 

No Cais do Valongo o tráfico é intenso.

 

Um entra-e-sai danado: chegam os pretos novos

recém-chegados das galés

 

Na vala comum do ancoradouro

em meio à maresia

 

ossos | cacos de cerâmica | vidro

Angola Congo Moçambique

queimados

e depois a pá de cal

 

Tanto negro soterrado pelo tempo 

esmagado nas engrenagens

da máquina mercante

 

Batem os tambores e soa o batuque sobre o couro quente: 

no Valongo ressoam trôpegos os sonhos

dos ancestrais escravizados

uns do lote banto | outros do lote iorubá

 

Sobre o antigo chão um novo piso de mármore:

pra vir Tereza Cristina Maria de Bourbon do outro lado do mundo

casar com Pedro II

 

Ainda hoje aqueles ossos | aqueles restos

aquelas peças todas aos milhares

abandonadas em um galpão

para catalogar:

 

um colar | um cachimbo

uma cesta para colher grãos

uma velha colher de madeira

uma bengala de castão

 

um trapo sujo | uma tíbia de criança

um cesto de bananas para vender

 

[vestígios] [ornamentos] [artefatos]

soterrada a memória de todo um povo

 

Naquele sítio ar-que-o-ló-gi-co do Rio de Janeiro

funcionou o velho mercado negreiro

(o maior das Américas)

encoberto pelo desprezo e pelo tempo

trazido à luz graças a uma espécie de erupção vulcânica:

 

um ti-ti-ti na região portuária

obras a pleno vapor pras Olimpíadas

e o VLT – veículo-leve-sobre-trilhos

(entre austeros mapas concebido)