PRIMEIRO LUGAR
O QUE É CULTURA
Rodrigo Lopes da Costa
É escrever a óleo o boi pantaneiro sobre a tela.
Feita por um mané qualquer e pouco importa
Se dilurida em Barro, ou
desinventada no Marinho.
É coisa feita por mãos calejadas
que entalha a figura de um bugre
numa raiz de macaxeira.
É samba cifrado em acordes;
Entoado no berrante;
enquanto o velho trem atravessa o pantanal.
É luz, câmera e ação.
É um sorriso fotografado;
Um passo ensaiado,
Um texto decorado, ou
Um ato encenado pelos palcos da vida.
É o pantanal, a piraretã e o ninhal
São os Guaicurus, os Kaiowas e os Terenas
A pintada, o dourado e a capivara;
É o tereré, o jacaré e a seriema;
É nosso estado,
O manso e o regato
É o rio que nos une;
A cheia que nos separa.
SEGUNDO LUGAR:
Teatro de Sombras
Olegario da Costa Maya Neto
Flauner sem destino, caminho a passos lentos a esmo,
Procuro com afinco encontrar algo esquecido. Pasmo,
Diviso ao longe cena daquele velho conhecido, meu passado,
Que já faz bater mais forte no peito o músculo cansado.
A chuva cai em gotas miúdas, sem pressa, mas sem trégua
Vai molhando as pessoas sisudas, suas roupas, almas e olhos,
Prisma líquido, ela transpõe com a imaginação a légua
Que separa o pretérito querido dos preteridos escolhos.
Caminho devagar pela velha cidade da minha juventude
E reencontro a cada esquina uma parte perdida de mim
Cada local desperta uma lembrança visual de dentro desse açude
Infinito, esse teatro de luzes, cores e sombras sem fim.
Vejo um a um meus amigos, minha amada, até os meus
Eus mais jovens. Cada cena me provoca uma emoção,
Evoca vozes, ecos passados, na ensurdecedora mudez elas vão
Ajudando a me despedir daqui, de mim, do que vivi, a dizer adeus.
TERCEIRO LUGAR
Rosa
Reginaldo Costa de Albuquerque
Pleno sol matutino anima os tons de opala…
A luz, num jorro, move os gonzos da janela
e no ambiente ancora aflita, e lenta, e rala…
Um triste quadro, ainda atual, se revela.
Rosa, sobre o sofá, sem desejos nem fala,
dorme… e já nenhum sonho adorna o sono dela…
No alto, aos borrões de seiva escarlate, a fitá-la,
tela onde um moço, firme, enlaça a noiva bela.
Rosa, folhas ao chão, não palpita-lhe o seio…
Pende a corola… ao lado, a tesoura entre assombros
de furtá-la do hastil, num rasgo imenso e feio…
E ei-la a fauce murcha abre… um sopro de alma aflora
e ergue-se e sonda e foge e leva um grito aos ombros:
O tempo de quebrar amarra ou jugo, é agora!…
QUARTO LUGAR
Retratos cotidianos
Adrianna Alberti
Eu vejo o belo na imperfeição
Em cores manchadas e quaradas
Em cortes supostamente retilíneos
Curvas e pontas afiadas sombreadas de sol
Há beleza na rotina suada
Proporção vagabunda tão digna de museu
O diário encanta como uma peça elaborada em exposição
Retoques feitos por muitas mãos sem nomes
Boniteza explícita em pichos nos muros
Rostos cansados e roupas usadas,
ora aglomerados, ora vazios.
Às vezes, o olhar vago, como o meu,
observando através,
mais o nada do que as horas perdidas
Há belo no rachado das peles,
nos calos e tufos oleosos de cabelo
Cicatrizes esmaecidas contando sobre peles experientes
Vozes desconhecidas, digitais, calor de abraços,
sapatos desgastados, pneus carecas
Algo de bonito no descanso do asfalto de beira de estrada
Os galhos retorcidos antes em flor, antigos de estações
Cinza de ruas esburacadas, descuido e sujeira
Árvore em prantos de cupins, sorvendo fumaça e chuva esparsa,
em verde seco de jardins
Descuido de um móvel cheio de poeira vermelha,
vassouras esquecidas ao relento.
QUINTO LUGAR
BALADA PARA IPÊS URBANOS
Volmir Cardoso Pereira
Um homem bem vestido dobra a esquina
Pensando em bitcoins e noticiários,
Quando para, estático na brisa,
Ante a árvore e os cachos de seus galhos.
Um homem bem vestido, sob os prédios
Vê, terrível, nu, nédio: o Ipê.
A flor escandalosa, um barravento
Acendendo as meninas desses olhos
De gente envelhecida antes do tempo.
O ipê: entre julho, agosto e setembro,
Quando as quimeras de fim de ano ainda estão longe demais
E os arlequins e carnavais foram todos soterrados.
Quando o homem, formiga, morde os lábios no inverno
E descobre que não juntou o necessário.
Também se foram (que averno!) as andorinhas e as cigarras
Pois o verão já se desfez,
E não sobrou nem prata, nem voo, nem canto, nem nada.
Repare bem, hei, você,
Nesses três meses de cinza, poeira e muito vento,
É que se vê: o ipê.
Flor magnética arrastando nosso olho enferrujado.
Prestai atenção: o ipê amarelo, esse ouro delicado,
Como um raio que se congela, enraizado no chão,
Riqueza gratuita em meio à urbe e seus estragos,
As pétalas feito chuva, mínimas mãos
Jorradas dos braços de Gaia: seus afagos.
Ipê, que também é roxo, buquê litúrgico, quaresmal,
Espírito todo carne, arte, Van Gogh vegetal,
A púrpura no fim do dia,
O riso possível, espirro na pólis, pólen de melancolia.
Ipê, branco, inadmissível, extraordinário
Como a festa de um luto oriental
Irmão das cerejeiras, amigo tropical de japoneses imigrados.
Um sândalo, um bálsamo, o perfume na íris, imemorial.
Ah, quem dera morrer como as suas flores na calçada,
Semeando só a cor, sem querer colher mais nada.
Amarelo, roxo e branco, ipê, espanto: o que dizer?
Tua tinta nos fere e quase nos envergonha,
Tanta beleza nesse ar sujo em que se sonha,
– Pra quê?
SEXTO LUGAR
Aos bugres do Mato das bandas do Sul
Marcia Regina Scherer
Eis que o chão, nossos pés pisam
Descalços, rachados, avermelhados d’apoeira
Eis que aos céus, calejadas das ramas, nossas mãos se erguem
Em prece
Nossa senhora dos bugres de cá
Olhai por nós
Fazei crescer a mandioca, a erva do mate
A planta do chão, a palma da mão
Que nos caia a chuva do céu
E lave o tiro
E lave a morte
E toda a sorte
Que nunca nos serviu
Que’a sina de ser bugre não seja nosso fardo
Ou nosso castigo
Que’o nosso canto, bugrado, seja ouvido
E como mantra entoado
E sem querer abusar da ousadia que me dá
Se não for favor demais
Traz pra gente um tiquinho a mais de riso
Que é pra gente celebrar
Os pés no chão
A mão na enxada
A água que cai
E a alma lavada
SÉTMO LUGAR
PEIXE DOURADO
Catiane Duarte Diniz Rezende
Senhor Gastrópodes era um caramujo temperamental.
Tropecei nele enquanto procurava folhas no quintal.
Esbravejou: Mal frequentado esse Pantanal!
Escondeu em sua concha espiral.
Eu, humano, segui.
Um, dois, três, quatro passos …
Escutei o Senhor Quero-Quero reclamando da minha aparição.
O vigilante saltou para defender seu território … pedi redenção!
Salvou-me a capivara, ofertando sua benção.
Após o susto, andorinhas fizeram canção.
Eu, humano, segui.
Cinco, seis, sete, oito passos …
Cheguei num riacho, correnteza brava, nas margens do rio, a iguana.
A cauda chicote abria passagem para dentro da mata, sua cabana!
Ela fugia da onça pintada, lá no barranco à paisana.
Acovardada com eximia galhardia, perdi a chalana.
Eu, humano, segui.
Nove, dez, onze, doze passos …
Sede, cansaço, atirei-me no tronco de uma árvore frondosa, estava amargurado.
Avistei uma garça real cantando, pousou nas manchas do ipê amarelado.
Um velho perguntou se eu tinha algum desejo e bateu o cajado …
Eu? humano? Acordei nadando … virei um peixe dourado.
OITAVO LUGAR
PARTO
Ligia Tristão Prieto
Escrevo
Pra parir o mundo
Pra nascer de novo
Pra comer segundos
Escrevo de nascença
De sobrevivência
De natureza
Dando à luz
As palavras mortas
A solidão do porto
As tragédias constantes,
Escrevo
Daquele sangue que escorre
Que não vem da vida
E nem da morte
Que vem do pulso
Que dança insano
Na insistência profana
De dar, de dar, de dar
À toda vaca louca
Qualquer chance
De vida
No meio de tanta lama.
NONO LUGAR
Visita onírica a Papelópolis
Gabriel de Melo Lima Leal
noutro dia em sonho de jornada
a papelópolis olvidada
estranhoso visitei
percorria a cidade de pálidas
esculturas atabalhoadas
que me olhavam como a lei
automobilísticas fumaças
fundiam-se avolumando as baças
fantasias do escarcéu
gotejavam condicionadores,
a água tragada dos servidores
ignotos do alto céu
ao passar ao pé do prédio infindo
li na arcada e estanquei ouvindo
papelópolis em outono
ao mirar acima, pras janelas
via as laudas em três vias, belas,
delas duas para o sono
caducas pétalas burocráticas
descartadas à estação errática
pela bruma citadina
a umidade vinda das paredes
não era extrato delas, mas deles
dos burocratas sovinas
e escorria como escarro do alto
até que as gordas gotas em salto
desgrudavam do edifício
e já no ar se abriam como bombas
transformando-se em escuras pombas
num festim adventício
e atentei que nesse rebuliço,
indo ao chão num pouso alagadiço
as pombas se desfaziam
num chorume negro e movediço e
desse tão repunante serviço
ternos, gravatas se erguiam
DÉCIMO LUGAR
Já Não Mato Formigas
Tamara Prantl Mangieri Figueiredo Ribeiro
Agora já não mato as formigas
Nem quando elas me picam
No meio da clareira um dia
Elas me disseram da vida
Para quê mais
Depois de dois tudo se refaz
Como é a beleza dos golpes
De açoite em açoite
Mostra do que somos feitos hoje
E percebo a tristeza
Em mim tão preenchida
Fosse um dia de domingo
Eu não teria morrido
Mais que um eco e menos que o épico
Sem rumo o céu aponta
Com a estrela do Cruzeiro
Me lembro que me fiz assim
Mais um torto gauche
À moda brasileira.