POEMAS CLASSIFICADOS 30ª NOITE NACIONAL DA POESIA – UBE-MS

1º LUGAR:

INDIGENTE RELATO

Rafael Neves de Souza

(Itacoatiara – AM)

O meu café da manhã
é uma xícara de água da chuva
encharcando meu sono,
afogando meus sonhos.
Quando não, é uma fatia
ardida de sol, fartando
minha fome de luz,
aumentando ainda mais
a minha cruz.
O meu café da manhã
não tem bandeja de prata,
não tem fruta, não tem leite,
não tem nata,
apenas a mão pesada do dia
me servindo os farelos
da madrugada.
Não é todo dia, que meu pão
nosso de cada dia, aparece
na minha lata,
nem trocado, nem bom dia,
nem cachorro vira-lata.
O meu café da manhã
está cheirando no bule,
na cozinha do apartamento
que eu não sou bem-vindo.
Sobra aqui o meu banquete!
Tá servido?

 

 

2º  Lugar:

NÁUFRAGO

Lucas Castor (Brasília – DF)

existe um e-mail

um correio eletrônico

uma carta

na minha caixa de entrada

que eu nunca leio

 

ele versa sobre

ACCESS BOOKS

é um e-mail gringo

que grita

um correio eletrônico

estrangeiro

 

eu não tenho coragem de lê-lo

 

apago todos os outros

sem dó

sem titubear

 

 

excluo até

dos itens excluídos

tudo

 

como quem solta a guilhotina

do décimo andar

na velocidade do vento

e deixa

 

tudo

tudo cair

ao pó

 

o mistério me paralisa

e eu sempre tenho

nos meus arredores

um e-mail não lido

 

eu sempre tenho

nos arredores

um náufrago

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3º LUGAR

CONSELHO DE CLASSE

Éder Rodrigues

Belo Horizonte – MG

 

[Em Memória de Marcos Vinícius da Silva, 14 anos,

morto no dia 20/06/2018

durante operação policial no Rio de Janeiro]

 

 

Podem dizer que o céu estava engarrafado

como sempre fica nos dias de quarta.

 

Que a correria na entrada do beco

distraiu os óculos na hora de decidir

entre o gatilho e a trégua.

 

Podem falar sobre a cor

que miram como se fosse alvo.

Das dezenas de balas

que dizem serem perdidas.

 

E até da dor que pouco comove

já que a recebem como visita

somente na sala

em frente à televisão.

 

Falam também

sobre nosso silêncio mal encarado

e do cortejo levando a pipa e o par de kichute.

 

Podem

e continuam a dizer tanta coisa,

“mas ele não viu

que eu estava com a roupa da escola, mãe?”

 

4º LUGAR:

 

RÉVEILLON DE SANGUE

 

Antônio Francisco Pereira

(Belo Horizonte – MG)

 

Mil fogos iluminam a noite,

deixam a cidade colorida,

por isso ninguém viu o fogo

da bala perdida.

 

Mil explosões retumbam na noite,

deixam a cidade ensurdecida,

por isso ninguém ouviu o estampido

da bala bandida.

 

Mil abraços se entrelaçam na noite,

deixam a cidade entorpecida,

por isso ninguém sentiu o estilhaço

da bala homicida.

 

De repente, no chão,

a criança baleada,

sangue na calçada,

mas ninguém viu nada.

 

Bala assassina

chegou na surdina

pra cumprir sua sina.

 

Criança caída

mão estendida

a pedir socorro.

 

O socorro tarda e falha

e o aço da navalha

rasga o coração.

 

O pai grita, a mãe chora:

meu menino foi embora.

 

E os fogos, que eram de artifício,

são agora e para sempre

a marca de um suplício.

 

 

 

 

 

 

 

5º LUGAR

 

                                             O SALTO 

Maurício Witczak

(Brasília – DF)

 

O homenzinho franzino e com medo do seu monomotor explodir,

Saltou de dentro de mim.

Quando meus olhos se abriram, diante do céu em chamas,

O homenzinho saltou com seu pára-quedas feito de retalhos,

Que sobraram dos pára-quedas dos homenzinhos mortos.

Eu tentei segura-lo com minhas mãos trêmulas,

Mas ele passou facilmente por entre meus dedos,

Com seu corpinho esquálido.

O homenzinho habitou meu corpo durante décadas.

Outrora menino, morava numa cabana ao lado do meu coração.

Nutria-se do meu sangue e era um guerreiro forte,

Que protegia a grande casa que sou eu.

O menino foi crescendo e seus medos foram aumentando.

Acordava assustado com as batidas aceleradas do meu coração.

Sentia falta de ar quando percebia que havia pouco ar no meu peito,

Cheio das ansiedades mundanas.

O menino crescido então tentou morar na minha garganta,

E se nutrir da minha voz livre, que canta cantos contentes,

Mas quando parei de cantar, quando parei de gritar pro mundo,

O que me fazia engolir a seco as angústias e as dores que me ofereciam,

O menino crescido ficou embolado junto com o nó da minha garganta.

Um dia, ele virou homenzinho e conseguiu se libertar do nó.

Libertou-se de mim. Dos meus dentes escondidos, sem sorrisos,

Diante de uma tristeza sem fim, pelo fim da humanidade em mim.

E enfim o homenzinho maltrapilho e em frangalhos,

Descobriu a porta que o libertaria. Caminhou até os meus olhos ,

E aproveitando um breve momento em que os abri,

Num segundo de coragem, ele saltou.

O homenzinho sedento, faminto e imundo saltou.

Com seu para quedinhas, pousou numa pequena ilha,

 

No pequeno terreno verde que sobrou da terra arrasada.

E lá, entre nascentes e músicas orquestradas pelos pássaros,

Finalmente pôde gritar pra que eu ouvisse que o homenzinho sou eu.

Eu, sempre eu e não sabia que o meu eu mais precioso

Cabia na palma da minha mão:

Um homenzinho que fez meu corpo se mover, meu coração bater.

E sustentou o fluir das minhas veias.

Agora, ele me mostra que estamos prontos pra reconstruir a fortaleza,

Que um dia nascerá da pequenina grandeza de nossa ilha-aldeia.

 

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6º LUGAR

RELEVO

Alvorino Antonio Dias da Silva

(Itatiba – SP)

A noite desce sem o ciá

E adentra aquele quarto.

A lâmpada dorme fora da luz.

As sementes germinais do tempo

Crescem no silêncio vegetal dos sonhos.

O alento magro do abajur

Estressa a penumbra.

Na sala…

Num quadro pendurado na parede,

Van Gogh

Está entre os comedores de batatas.

Intramuros…

Flores fâmulas,

Emitem seus redondos odores.

Ibidem,

De uma estátua de pedra

Um pensador atinge a solidão.

Na madrugada amarela,

Num estreito restrito

Uma jovem desorientada

Carrega seu pesado recato.

Na janela…

Um vento hilário assobia um bolero.

Os grilos acalentam a noite,

E a juriti acorda o dia.

 

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7º LUGAR

Vini Willyan dos Santos de Arruda

(Campo Grande – MS)

Por essas ruas eu andei solitário

Andei requebrando os meus quadris

Andei ouvindo anedotas

E às vezes usava batom.

Por essas ruas eu andei de mãos dadas

Entre assobios, perversidade e assombração.

Por essas ruas eu andei meia noite e meio dia

Na sombra dos santos e na luz que os guia.

Andei com o Diabo

De minissaia, bêbado e assustado.

Andei desligado

Do mundo, da vida.

Por essas ruas eu andei “viado”

Andei devagar e andei rápido

Fugia do medo, do soco

Do susto que é viver.

E morri odiado na língua de outro “viado”.

Por essas ruas eu vivi meus melhores 100 anos

Ouvindo Raul e Lady Gaga.

Fiquei constrangido com chacotas

Dos lindos moribundos às vezes marombados.

Eu tremi

De frio e o violência.

Por essas ruas que ninguém me mostrou a esquina

Virei produto de um corpo traficado,

Mas se hoje ainda canto com doçura

É que segui

Meu destino encruzilhado.

Pois se em algum lugar sei viver

Esse lugar é aqui

Por onde andei,

Ninguém andou ao lado.

E me fiz seu, meu, sua

Enquanto no telhado da igreja ouvia os pombos

Por essas ruas onde o corpo pomos

Eu gozei

e você,

Gozou?

 

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8º LUGAR

 

ESPELHO

 

VALÉRIA PISAURO

(Campinas – SP)

No reflexo do espelho me perco

Estreito efeito de segredos

Modelo abstrato que sou partes,

Testemunha de pedaços inteiros,

Face manchada de metades,

Rascunho em que não me vejo.

Contemplo outras personagens,

Sombras que reconheço,

Sem mais governo, esmoreço,

Em busca do perfeito acabamento.

 

Sou Narciso, Alice, Madrasta

Dispo a máscara da verdade

Vaidade ofuscada de se ver

Imerso pelo avesso me visto

Não sei o que sinto nem ordeno,

Se fujo ou desejo permanecer.

Precedo sem cuidado, aconteço,

Recupero o meu alento

E assim vou sendo, feito Fênix

Morro todo dia em que renasço.

 

Corto-me com os fragmentos

Do tudo ou nada, estilhaços

Mosaicos em papel machê,

Imagens perfeitas ou deformadas

Iluminadas ou à penumbra

Minha alma cria asas,

Sigo o silêncio afeito do tempo

Que não se vê nem se lê.

Mergulho oculto, breve sina

Tudo o que somos e o que deixamos de ser!

 

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9º LUGAR:

Abandono

Silvio Valentin Liorbano

(Osasco – SP)

 

 

Poema escrito não tem mais dono

Logo se esquece a autoria

A ninguém pertence a poesia

Escrever é uma espécie de abandono.

E por mais que seja belo e criativo

Será esquecido em alguma sala

No desconforto de alguma ala

Nas páginas de um livro.

Mas se escapa da boca da traça

E brinca no caderno da criança

Logo se ouve na boca da praça.

E mais uma vez sem dono

Ao mundo se lança

Escrever é uma espécie de abandono.

 

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10º LUGAR

MÍMESE

Mariana Sá Bertolacini

(Contagem – MG)

saio na rua e minto meu nome

estampando o sorriso do desespero

(entre eu e a lua, de manhã, quem some?

entre eu e as outras, quem vem primeiro?)

 

sou o último cigarro do seu maço

usa meu sarcasmo se não tens isqueiro

(se não recomendo, por que é que faço?

pra ser carnaval no seu fevereiro)

 

me olham chocados: “deve ser louca”

para tuas perguntas, serei mil respostas

pra tua nudez, serei sua roupa

 

é desta aberração que tu gostas?

(por que os elogios voltam pra boca

toda vez que me viro de costas?)

 

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