AINDA SOBRE O LITORAL CENTRAL | Volmir Carodoso |
AINDA SOBRE O LITORAL CENTRAL
Para Geraldo Roca
Eis que ele chegou com seu canto,
polca rock, Dylan guarânio.
Guitarra com fúria de harpa:
feito uma cerca arrebentada.
Diziam do bardo: este, herdou terras!
E ele teimando em fazendas no ar.
Sulcando o vento, foice elétrica, rio sonoro,
arredio como o Apa, vetusto como o Paraguai.
Nunca se curvou: mais louco do que a média,
a ponto de correr atrás do que o dinheiro não compra.
Alumbrado com tradições platinas, litorais centrais, outra onda.
O rio.
Andou triste em Copacabana, a chuva sobre o mar.
Back in Big Field: rebelde agropunk e tome polca outra vez!
O Mar de Xaraés nos bueiros da cidade.
O guaicuru em seu cavalo pedrês
pisando capôs de picapes na Afonso Pena.
Carpinchos aluados e blasés furando o sinal vermelho.
O machete guarani, o silvo do desassossego, a vingança Terena.
Ah, querido aedo, porque não vais mais cantar?
A lira descendo o rio, afogada oferenda,
De Asunción a Corumbá,
O pai do seu pai na chalana, um fantasma, uma lenda a te esperar.
O pôr do sol lindo de morrer e as estrelas do cruzeiro ainda fazem um sinal.
O estalo tépido na noite de natal,
Um tiro, longo como um gongo,
Um bolero triste, uma milonga.
Terremoto que estronda e engole noites mágicas em Machu Picchu.
O rio represado, lago em círculo: um disco.
Rastro acústico de utopias platinas.
Estradas d’água.
Nandi Vera: vacío que brilla.
Hasta luego, mi camarada.
Eres semilla.
JUSTA MEDIDA | Susylene Dias De Araújo |
Justa Medida
A poesia,
tão cansada de pedir licença,
agora deu pra exigir justiça do tipo poética.
E com as próprias mãos agarra o verbo
– cansado, roto, desbotado – e cega.
Nas ruas,
levanta bandeira, agita o cartaz,
se arma na palavra e aparece
– voraz – na camiseta.
Se tarda,
falha.
Amarildo, Flausino, Marielle, Eloá ou Thémis?
Qual é teu nome?
musa da balança,
deusa que não me enxerga.
UM MANEQUIM | Reginaldo Albuquerque |
Um manequim
Fresca aurora recua a face em despedida…
Ao pé do pau-brasil, num recanto da praça,
esparso, um manequim jaz sem dor, riso ou graça,
confeitado de musgo e relva umedecida.
No ar urbano que o envolve, ainda uiva a carcaça
arquejante da infâmia, asquerosa, incontida!…
É um quadro a profanar os sonhos nesta vida,
no antigo e inane ciclo: ecoa… instiga… e passa…
Faísca o sol… intrusa ave cisca-lhe o brim
do peito… alheia, aviva um medalhão carmim…
O susto a asa distende e espalma, o céu cortando!…
No delírio, ao luar, um telão repetia:
Luz de som… dó-ré-mis de cores… e a euforia
da nave e os seus robôs atirando, atirando…
MEMÓRIAS DE IPE | Adrianna Alberti |
Título: Memórias de Ipê
Nascida fria na garoa lilás constante,
na terra tingida de pôr-do-sol
construiu suas asas em papel e reminiscências,
deixando raízes emaranhar seus tornozelos
até chamar de casa o inverno inclemente
Há memórias de ipê em seus verbos e em suas curvas
frutos dos anos fragmentados entre o aconchego, o suor e a lágrima
Guardadas nas tardes que se rendam de árvores em sombras
do lusco-fusco em ruas e estradas cheias de alvoroço
Há digitais marcadas à silêncio afável que tatuam a pele
para, indeléveis, serem sempre aspirações para linhas em branco
Ela, nascida suçuarana, toda úmida, introspectiva e tímida
foi, seguindo a sombra de uma onça arredia,
que se encontrou aroeira em flor, arisca, fascinada
Vermelha!
E fica guardado entre céus azuis e sóis cinzas
depois dos ventos de poeira e fumaça e das chuvas
Aquela crise escondida atrás do portão que se enfeitava com flamboyant
distraída pelos cachos da cássia-imperial
e seu perfume doce que, à noite, encobria o cheiro do cigarro
A cativa de um primeiro encantamento
disfarçado de tucano voando em meio aos carros
pousando ainda robusto numa figueira distante
O beijo quente de um chuvisco tardio de fim de dia
UM RUGIDO DE LEOA | LUCIANA FERREIRA DA SILVA |
UM RUGIDO DE LEOA
Empodere-se mulher guerreira independente
Tá no corre não se rende mulher rei na linha de frente
Firme igual baobá no solo sagrado
Defendendo o legado está de Black e punho cerrado
Sou rainha sou guerreira nossa história é verdadeira
Minha rima representa toda realeza preta
Preta bonita livre e de pele escura
Voz pesada poderosa nossa força é a cultura.
Rainhas brilham com poder de governar
Eu quero e nota sobre nota cada uma escolhe seu lugar
Dona do destino lutando por direitos
Fiz da resistência um hino enfrentando preconceitos.
Revolucionária e com coragem no olhar
Seja forte nem as barras das grades vão te parar
Lutar contra a corrente buscando nosso espaço
Sempre determinada com o coração de aço
Herança genética vinda de ancestrais
Fortes inteligentes mulheres fenomenais
No livro de aço quero as heroínas
Mariele, Sueli, Djamila, seleção feminina
Aqui a cor é uma sentença Gueto periferia
Nossa consciência negra supera a covardia.
O sistema é racista e ataca meus irmãos
Te quer morto esquecido sem nenhuma explicação.
Sou filha da diáspora um pedaço da África
Que luta todo dia para se manter intacta.
Minha fé é minha arma o meu crespo minha coroa
no griot minha mensagem um rugido de leoa.
DIVISÃO DO TRABALHO | Tarita Almirao |
Divisão do Trabalho
Quando estudei
Divisão do trabalho
O significado da especialização
Eu não pensei que dividiam
A galinha
Coxa, rabo, peito
Pra que a gente não visse
nesses pedaços
Uma vida.
Quando li sobre alienação
Eu não entendi
Como não percebiam
Que também nos dividiam
Em
Coxa, rabo, peito
Pra que não pudessem reconhecer
Uma mulher nessas
Fatias.
Vindas e voltas | Cristina Rubert |
Vindas e voltas
A linha me escrevia
a lápis ou à caneta
errava, rasurava e se repetia
a natureza, toda, de mim, se ria.
No Eden, a maçã mordia meu avesso,
em contrassenso, sentia o gosto dela
dentro de minha vida sem preço.
O escárnio anunciara o maldizer
um milhão de anos
no eu, no outro, no eles e no você.
No tempo de vida vazia, me desencontrava
no vão, cismava viver
em vanglórias, tortas e retas
côncavas e convexas
não vivia, expirava,
em cada amanhecer.
Escrever certo na linha torta
escrever torto na linha certa
era clichê do mestre e do discípulo
no plano e na rota, na tentativa do aprender.
E, na narrativa,
ser prosa, ser poesia
ser real, ser fantasia
no palácio ou no barraco
sair do rascunho, passar a limpo
o não e o sim do nascer
crescer, se reproduzir e morrer.
Nas vindas e nas voltas
em linha reta e torta, na curva, na estrada, na passagem
ser o grão dentro da vagem.
Se deixar ir nas asas de um unicórnio
fruir, soltar, se divertir, no plexo, não pré ocupar
no ganhar, no perder, começar nova via
desentalar, vomitar tudo o que asfixia,
deixar, no duro da calçada, a flor nascer, ainda que tardia.
No sim e no não, ser viagem sem contramão
servir ao bem em ação
escrever a vida em versos livres
e, na cantiga de amigo, ser de amor
sem culpa, sem medo, sem dor.
INFLORESCÊNCIA | Gleison Garcia da Silva |
Há uma celeuma de silêncio no subúrbio
ainda que se possa ouvir
com os pés do ouvido, os latidos
dos cães de dona Meire
fio condutor de entrelaços;
o mórbido motor da geladeira
o ranger surrado
da cama suada
os sopros do ventilador de chão;
telhados riscados de transas felinas
alguns arranhões
na pálida luz que golfa da íris da Lua —
gota azul, reflexo, vela, penumbra.
Há um outro silêncio, maior ainda,
vulto enorme que martela
na dureza do trabalho do servente
que descansa com horas contadas
para construir o altíssimo edifício
de hora alguma.
da moça escarlate
que pelos seios enigmáticos
da noite (a qual é dama)
atende seus clientes eretos,
do velho que vende desinfetantes multicores em pets
sob o asfalto cinzento
da sua vagarosa carriola
que carrega a coluna entortada
de tantas outras histórias.
Há um silêncio repentino
na rouquidão escura das ruas
derramadas em mais silêncios,
em voltas infindas, cheias de mãos e olhos,
ambições, euforias, lágrimas
nas fendas, neste céu fantasmagórico
pelo lume anêmico dos postes aos labirintos
que alimentam os ossos das mães melancolias.
Há um silêncio dentro de si mesmo
soniais madrugadas
que guardam as chaves primordiais
dessas nossas transmemórias.
Lá | Luciano Risalde |
Lá
Lá
a Lua é presa por uma teia de aranha,
Quando a Lua cansa, se deita e o Sol levanta.
Lá os passarinhos são a banda que canta,
E o grilo também é o cantor.
Lá
o Rio é a piscina de todo mundo,
É plantação de peixe, é aquário sem vidro.
Lá as casas não sabem o que é muro,
Existe o com licença, obrigado e por favor.
Lá
os vagalumes brincam de ser Estrela,
Acende e apaga, pisca- pisca a noite inteira.
Lá o Sol é a grande fogueira,
Que queima e aquece a minha alma.
Lá
as Estrelas não são feitas de avião.
Lá as Nuvens são feitas de algodão.
Lá as Flores também tem coração.
Lá é onde Deus encontrou a calma.
Abster-se da verdade | Bruno Rodrigues de Oliveira |
Abster-se da verdade
É covarde a escolha de abster-se
indo se perder num breve labirinto
− encucado dos presságios e desterros −
esnobando o desmazelo de importa-se,
tal ruínas dos segredados transatos
− excluindo do arqueólogo xereta −
pelo mato em meio a terra, os tesouros
redigidos nos rodapés dos contratos?
Ou encare o xeque-mate do acaso
feito pústulas pingando (mascaradas)
e corrompa as tais verdades abjetas,
acondicionando as gotas no seu vaso;
ou pulule as mentiras desenhadas
como a rupestre arte esquecida,
revelando as imagens do remoto
sob as sombras das ideias perpassadas.
Só inflija a dor que um dia suportou.
A verdade pode mesmo alforriar,
entretanto, os males (ácidos sulfúricos)
são intrínsecos no seu plano de voo.
Transfigure as verdades floreando-as
em aveludadas rosas escarlates,
e, por fim, entenda a relatividade
das mui vozes em sua boa ressoando.
Oliveira do Cerrado